Como um de nós

 

"Perfeito, apesar dos erros". Li este slogan que se refere ao livro "Formando um homem de Deus", de Alan Radpath, editado pela CPAD, que me inspirou uma dezena de pensamentos. Não li o livro ainda, mas não me lembro de ter visto um slogan tão feliz, profundo e significativo quanto este. Obviamente tanto o slogan como o livro se referem a Davi.
Lucas dá testemunho de Davi, parafraseando o próprio Deus, como sendo homem segundo o coração de Deus (At 13.22) o que nos conduz irremediavelmente a investigarmos o caráter, temperamento e personalidade de Davi, bem como a natureza do relacionamento que mantinha ele com O Senhor, como paradigmas para que nós também alcancemos semelhante conceito junto a Deus.
O que mais impressiona na biografia de Davi é o fato de estar ele muito longe da perfeição. E é interessante notar que a Bíblia em geral, e especialmente os livros que tratam da história do maior rei hebreu, não fazem a mínima questão em mistificar a Davi, descrevendo-o como uma espécie de super-humano, semi-divindade. Ao contrário: descrevem de forma cabal seus erros e pecados, bem como sua busca humilde e quebrantada por redenção.
Isto traz a lição que reputo mais rica acerca do caráter de Deus: para ser um homem segundo o coração de Deus não se exige infalibilidade. O fato de Deus ser Santo não o contamina a ponto de se aproximar apenas de quem compartilhe o mesmo estado de perfeição.
Pode parecer ao leitor da Bíblia que o quanto dito no parágrafo anterior esteja em contradição com a ordenança de Cristo como descrita em Mateus 5.48 ("Sede vós, pois, perfeitos, como perfeito é o vosso Pai"). Assim não é. O que Cristo estava dizendo era que devemos buscar a maturidade espiritual. Porém Ele não estava impondo como condição para sermos recebidos e aceitos pelo Pai um tal estado de irrepreensibilidade. Se assim fosse, a salvação já não seria produto da misericórdia de Deus.
A seguinte lição expressa melhor o que dissemos: "Em termos de caráter, nesta vida, não podemos atingir a perfeição, mas podemos aspirar ser como Cristo, tanto quanto seja possível" (Bíblia de Estudo Aplicação Pessoal, Rio de Janeiro, CPAD, 2008, p. 1227).
A expressão "coração" no verso já citado de Atos, cap. 13 (v. 22) significa pensamento ou mente (kardia). Deste modo entende-se que o homem "segundo o coração de Deus" seja, na verdade, aquele que Lhe conheça a mente. Mais do que ser temido, Deus deseja ser compreendido pelo homem. A promessa de Deus falada por Jeremias aos cativos de Judá dizia: "Dar-lhes-ei coração para que me conheçam..." (Jr 24.7); da mesma forma Oséias incita: "Conheçamos, e prossigamos em conhecer ao Senhor..." (Os 6.3).
Davi foi capaz não apenas de entender este anseio de Deus, mas principalmente de tentar, com sua vida, atendê-lo. Um dos momentos mais emocionantes na história de Davi, segundo minha opinião, dá-se por ocasião de uma gravíssima crise em seu reinado, quando se viu diante de uma revolta encabeçada pelo próprio filho Absalão.
Provavelmente o misto de sentimentos que envolviam o rei era insuportável. O amor de pai mesclado com o orgulho do soberano, a expectativa dos súditos, o temor em contrariar a vontade de Deus, etc.. Num dos momentos mais dramáticos e de maior humilhação, Davi decide com sua corte fugir de Jerusalém. A comitiva leva a arca da aliança, e pelo meio do trajeto Davi determina ao sacerdote Zadoque que leve a arca de volta a seu lugar na cidade de Jerusalém. E revela um sentimento como poucas vezes se viu. Eis suas palavras: "Então disse o rei a Zadoque: Torna a levar a arca de Deus à cidade. Se eu achar graça aos olhos do Senhor, ele me fará voltar para lá, e me deixará ver a arca e a sua habitação. Mas se ele disser: Não tenho prazer em ti, então estou pronto, faça de mim como parecer bem aos seus olhos" (2 Sm 15.25-26, grifei).
Vê-se uma entrega, uma rendição à vontade de Deus, ímpar, porque supera o interesse em desfrutar das vantagens proporcionadas pela posição de soberano monarca da nação. Recordo-me nesta altura de uma dramatização contida na obra "Perfil de três reis", em que Davi declina preferir a vontade de Deus ao Seu poder.
Era esta submissão genuína, que não era contaminada pela fama, bajulação ou sucesso, que conquistou o coração de Deus, e foi um trunfo na vida do maior rei de Israel. Porque foi ela que permitiu que Davi não tivesse rodeios em suplicar misericórdia a Deus quando pecou, sem considerar sua própria posição terrena. Veja as palavras do Salmo 51, e você entenderá o quebrantamento que assomou o rei ao perceber que ferira o coração de Deus.
Por outro lado, Davi nunca usou esta submissão a Deus como pretexto para covardia. Sua biografia é cercada de relatos de bravura destemida, e coragem heróica. Ainda jovem despontou em destaque até mesmo em relação ao Rei Saul conforme narrativa de 1 Samuel cap 18, v. 7.
Ainda assim, Davi encontrou a linha tênue de equilíbrio entre a ousadia em Deus e a precipitação. Isto se vê quando, ao ter a oportunidade de matar a Saul, que além de persegui-lo ferozmente ainda ocupava o trono para o qual Davi já fora ungido, refragou-se cortando-lhe unicamente uma tira da túnica, pelo quê inclusive contritou-se (1 Sm 24.1-7).
Enfim, a biografia de Davi encanta porque fala de ousadia e submissão; falibilidade e quebrantamento; adoração e entrega. Porque as "humanidades" do rei são deixadas tão latentes que nos sentimos à vontade por sermos quem somos e como somos.
Talvez seja esta mesma a intenção de Deus em apresentar a história de Davi como o fez: deixar-nos à vontade para reconhecermos nossos defeitos e limitações, livres de culpas e vergonhas, porque este é o primeiro passo para a mudança. Identificarmo-nos com um rei que foi homem, falho porém sublime, e sobretudo, perfeito apesar dos erros.
Soli Deo Gloria!
José Wellington Bezerra da Costa Neto
 
 

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